- Barricada_FT Beto Assem-24

Mais um na barricada

OPINIÃO

Quando topei participar da residência artística Barricada, na Bienal Sesc de Dança 2023, eu não fazia ideia exatamente do que me esperava. A proposta era acompanhar o grupo de artistas, em sua maioria composto por pessoas ligadas à dança, para ensaiar e apresentar o trabalho criado pelo coreógrafo, pesquisador e performer piauiense Marcelo Evelin. A partir dessa experiência, eu deveria escrever um texto sobre a minha participação no projeto, em primeira pessoa. O texto é esse que você lê agora.

Não sou uma pessoa ligada à prática da dança, ou com rotina regular de exercícios: estou mais próximo do sedentarismo que de uma pessoa ativa. Quando cheguei às 14h na Sala dos Toninhos, dentro da Estação Cultura, para o primeiro dia de residência, notei rapidamente que as minhas roupas leves não seriam leves o suficiente para enfrentar o calor e as dinâmicas que faríamos naquele antigo galpão ferroviário, hoje transformado em sala de ensaios e apresentações.

A proposta do trabalho era relativamente simples: montar uma barricada humana, onde as pessoas, entrelaçadas umas às outras, se movimentavam de um lado para o outro em linha reta (ou quase), sem deixar espaços entre si e sem perder o contato com as pessoas mais próximas. O toque físico é incessante, do começo ao fim. As pessoas dão as mãos e os braços e os olhos e as pernas e as costas para subir; e os quadris para segurar e a cabeça para apoiar e o corpo inteiro para esfregar e dançar coletivamente. Quando ensaiamos pela primeira vez, a sensação de compor aquele emaranhado de corpos me remeteu à Guernica, de Picasso. Porém, diferente do quadro, cuja imagem de resistência é feita de ferocidade e desespero, a nossa barricada humana era feita de ferocidade e ternura.

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Guernica. Pablo Picasso.

Para chegar nesse resultado, Marcelo Evelin propunha dinâmicas que levavam os artistas participantes (segundo a minha percepção) a olharem uns para os outros com empatia, no sentido de trazer a Barricada para um lugar onde a individualidade dos corpos se dilui e a multiplicidade do coletivo está em cada corpo. Dito de outra forma e usando expressões usuais da dança, é como se cada corpo fosse contaminado e atravessado pela presença dos demais corpos, numa dança onde o eu só é possível em relação ao outro. Ninguém é um só.

A primeira dinâmica proposta foi também a que mais me impactou. A ideia consistia na formação de duplas, onde uma pessoa deveria deixar-se conduzir pelo movimento da outra, como se fosse uma espécie de marionete. Talvez por eu ser uma pessoa tímida, num ambiente estranho e totalmente fora da minha “zona de conforto” (sic) tenha demorado um pouco para encontrar uma dupla, porém o olhar expressivo da Bia logo me convidou para aquela insólita dança.

Quando a gente tira uma pessoa para dançar forró, por exemplo, a regra do jogo é bem definida: dançamos um ritmo conhecido, executamos passos característicos do estilo e conduzimos ou somos conduzidos pelo par, também de acordo com códigos pré-estabelecidos. Essa outra dança não tinha música e o código de entendimento era construído naquele momento entre o par. Para além da novidade de ser manipulado e articulado por um corpo desconhecido, tive a sensação de, através dos movimentos e olhares, conversar com aquela pessoa por meio de uma linguagem totalmente nova para mim. Não saberia definir se linguagem das artes do corpo, se linguagem da empatia ou do brincar, mas o certo é que conversamos, demos risada e nos entendemos sem palavras ou coreografia. Quando chegou a minha vez de conduzir, me dei conta de quão limitado era meu repertório de movimentos, muitas vezes associados a um imaginário da dança clássica, porém isento de qualquer coordenação. – Bia, muito obrigado pela paciência!

Ao final do ensaio, meus pés estavam imundos e a minha roupa completamente ensopada, cheirando a pelo menos trinta pessoas. Chegando em casa, senti meu corpo desperto e cansado e eufórico como nunca. A vontade era de habitar a cama por uma semana e, ao mesmo tempo, viver intensamente e sem repouso. Uma sensação de estranhamento e re-conhecimento de si, pulsando feito onda na beira da praia, ou bafo de locomotiva, estufando e arfando o acúmulo de energia, e seguindo adiante, em ondas idas e vindas, até onde a linha do trem e a barricada humana se encontravam.

A residência resultou em duas apresentações que aconteceram na Estação Cultura, antiga estação de trem transformada em espaço multiuso para eventos culturais, amplamente utilizada pela comunidade campineira. Além de ser a minha estreia participando de uma peça de dança enquanto performer, essa experiência também inaugurou uma outra etapa de consciência e percepção corporal em minha vida. Até então, eu não havia me dado conta de como as contingências do trabalho e os corres de todos os dias nos impedem de perceber o corpo que habitamos. Mais que isso: o ritmo acelerado da vida tem nos levado mais e mais a reforçar uma dissociação nada saudável entre corpo e mente, entre o eu e o outro, acentuando o individualismo nas relações humanas, talvez porque estejamos demasiadamente desatentos e cansados para reparar em nós mesmos e nos outros.

Vi na Barricada um movimento em oposição a essa ideia: estar junto e perceber o próprio corpo e os corpos que nos cercam, é também uma estratégia para o estabelecimento e fortalecimento das relações coletivas. Estar atento ao outro. Estar junto como posicionamento político. (A)firmar-se com e no outro. A barricada humana que criamos atesta a necessidade de estarmos juntos para nos protegermos, para não deixar passar o que nos ameaça. É a afirmação do cuidado e afeto coletivo como ferramenta de luta.

Por Fernando Bisan, editor web do Sesc Campinas.